Um dia antes do Talibã tomar Cabul, no dia 14 de agosto de 2021, Zekrullah Azad tirou o visto iraniano e foi direto para o país vizinho, localizado na fronteira oeste do Afeganistão. O afegão, que eu pude conversar no aeroporto de Guarulhos, explicou-me: “Meu plano era tirar o visto e ficar fora de Cabul por uma semana, porque todas as províncias tinham sido tomadas, somente a de Cabul estava de pé”. Um dia depois, quando as fronteiras do país foram fechadas pelo grupo extremista que assumira o poder, o jovem de 28 anos já estava a caminho do Irã. O que era para ser uma semana se tornou 21 dias de espera.
A trajetória de Azad estava longe de terminar. Após o período de três semanas em território iraniano, o afegão partiu para o segundo e último país antes de chegar ao Brasil: a Turquia. Formado em Administração de Empresas pela Universidade COMSATS, no Paquistão, ele revela uma lista extensa de países pelos quais já passou. Certa vez, passou pela Índia, quando conseguiu o visto turco com o objetivo de fazer mestrado no país. Cerca de seis meses depois, Azad estava na Turquia, mas não pelo mesmo objetivo. Dessa vez, os estudos foram interrompidos por um motivo maior: a sobrevivência.
“Quando o Talibã tomou o poder, eu tive que sair de qualquer jeito do país, porque eu trabalhava para o último governo. Esse foi o motivo.”
Foram dois longos anos em território turco. O afegão, que já trabalhou no departamento de Economia do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Afeganistão, viu-se sem saída e teve que enfrentar diversos desafios nos quase 800 dias que permaneceu por lá. “Foi muito difícil, eu passei muito estresse”, desabafou. Ele contou que não trabalhou no primeiro ano, pois havia um dinheiro guardado. Mas, no segundo, não conseguiu escapar e arranjou um emprego com poucos requisitos, como não ter inglês avançado. “Era trabalho físico, não de escritório. Foi a primeira experiência da minha vida trabalhando com isso, então foi bem difícil”, explicou.
Além disso, Azad, embora estivesse com a situação migratória em dia, disse que o tratamento recebido no país era “complicado”. Isso porque, quando se tem o visto negado, a polícia concede um prazo de duas semanas para deixar o país e, caso não saia, a pessoa pode ser deportada. “Isso é perigoso, pois é preciso voltar para o Afeganistão, e o Talibã verifica quem está entrando e checam coisas do tipo se você já trabalhou para o último governo”, revelou. Para muitos que, assim como ele, saíram de suas terras na esperança de um novo começo, voltar para o Afeganistão é o retrato de um verdadeiro pesadelo. Mas, afinal, o que se passa no país da Ásia Central?
As consequências do Talibã
Dando continuidade ao seu longo histórico de conflitos, a crise humanitária que assola o Afeganistão é uma das maiores e mais graves do mundo. Seu povo, que é forçado a se deslocar do país desde 1979 O ano de 1979 foi o início da Guerra do Afeganistão, com a intervenção da União Soviética, persistindo por uma década. Mais tarde, os EUA se envolveram após os ataques de 11 de setembro de 2001. Mesmo após duas décadas, com o retorno do Talibã, a migração em massa dos afegãos continua. , conta atualmente com 28,8 milhões de pessoas que necessitam de assistência humanitária, segundo análises da Estratégia de Soluções para Refugiados Afegãos (SSAR). Desde que foi assumido pelo Talibã há mais de dois anos, sob o comando de Haibatullah Akhundzada Com raras aparições públicas, o líder supremo do Talibã, pertencente à geração pioneira do grupo, assumiu o comando em 2016, após a morte do líder anterior, Mullah Akhtar Mohammad Mansour, em um ataque aéreo dos Estados Unidos no Paquistão., a economia está em decadência, o sistema de saúde está em colapso, os direitos fundamentais de mulheres e meninas estão ameaçados e cerca de 34,4 milhões dos 41 milhões de habitantes do país estão abaixo da linha da pobreza, conforme o Programa Mundial de Alimentos (PMA).
“Eles estão controlando pessoas com armas e tortura. Tudo o que eles estão fazendo agora não é certo”
Azad disse que o último governo, comandado pelo então presidente Ashraf Ghani Governou o Afeganistão de 2014 a 2021 e fugiu para o exílio quando o Talibã assumiu o controle. Horas depois de abandonar o país, o ex-líder declarou em sua conta no Facebook: “Para evitar um banho de sangue, pensei que seria melhor ir embora”. Naquele momento, os talibãs já haviam divulgado imagens em que apareciam sentados em seu gabinete de presidente. – o qual fugiu para o Emirados dos Árabes Unidos quando foi deposto pelo avanço do Talibã -, também não era perfeito, mas era “bom”. O ex-funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros contou que, antes, somente uma pessoa trabalhando na família era o suficiente para sustentar todos. Agora, isso não é possível. O país vem enfrentando uma de suas piores crises econômicas, acompanhada por uma alta taxa de desemprego – justificadas por Azad pelo fato de que “o governo atual só contrata iguais a eles”, o que diminui a possibilidade dos grupos reprimidos trabalharem. Nos últimos 20 anos antes da volta do grupo armado, o cenário do Afeganistão não era um dos melhores, mas seus cidadãos podiam dizer que viviam em uma democracia. Diferente de hoje.
O grupo fundamentalista sunita Organização que adota uma interpretação rigorosa e conservadora do Islã sunita, que defende a aplicação estrita da lei islâmica, a Sharia. protagonizou por décadas inúmeros conflitos contra o governo anterior e já esteve no comando do território afegão há muitos anos até serem derrotados pelas forças estadunidenses, após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001. Portanto, muitos afegãos já sabiam o que estava por vir antes mesmo do Talibã assumir oficialmente o poder. Logo nos primeiros dias da retomada, em agosto de 2021, o desespero das pessoas tomou conta do país. “Foi horrível, você deve ter visto o vídeo das pessoas penduradas no avião”, disse Azad, visivelmente abalado.
Afegãos se agarram a avião americano em movimento em tentativa de fugir do país, em 16 de agosto de 2021,
um dia após o Talibã tomar Cabul. (Crédito: Reprodução – YouTube/EuroNews em Portugal)
Há mais de dois anos da cena descrita pelo refugiado, a situação no país continua a trazer sérias consequências: embora o conflito tenha diminuído, a violência persiste, gerando medo e privação. Esse é o principal motivo que continua a forçar os afegãos a atravessarem as fronteiras em busca de segurança e, consequentemente, gerando mais uma crise migratória no mundo.
A diáspora afegã em busca de refúgio
Assim como Azad, existem mais de 6,1 milhões de refugiados afegãos pelo mundo, de acordo com os indicadores-chaves presentes no site da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O Afeganistão é o segundo país com o maior número de pessoas refugiadas no mundo, atrás somente da Síria, com 6,5 milhões, e à frente da Ucrânia, com 5,9 milhões. Somados, os três países totalizam aproximadamente 51% de todas as pessoas que necessitam de proteção internacional no planeta.
Dos 36,4 milhões de refugiados espalhados pela Terra, 69% vivem em países vizinhos dos seus países de origem. Com os afegãos, isso não é diferente. Cerca de 86% dos refugiados provindos do Afeganistão, o equivalente a 5,3 milhões, vivem no Irã, Paquistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão, segundo a ACNUR. Além disso, a Turquia, país que foi lar de Azad por mais de dois anos, possui a maior população de refugiados no mundo, com 3,6 milhões de pessoas, seguido do Irã e da Colômbia.
A intensa migração de afegãos para os países vizinhos é resultado do desespero das pessoas em fugir do caos que eclodiu no Afeganistão. A decisão é motivada principalmente pela conveniência geográfica, não pela situação desses países. “Nossa embaixada não está funcionando, o Talibã fechou as fronteiras. Só nos resta a embaixada dos outros países [ao lado]”, observou Azad. Atualmente, muitos afegãos buscam, principalmente, o Irã e o Paquistão em busca de uma única coisa: um visto em seus passaportes para outras partes do mundo. No entanto, o processo não é fácil. O administrador ainda esclareceu: “Só alguns países estão ajudando, outros não estão facilitando. Somente o Irã [está] e tirar o visto no Paquistão é mais difícil”.
“A realidade do mundo é essa: quando você está em uma situação de dificuldade, a maioria das pessoas rejeita você.”
Esse trâmite pode levar meses ou até anos por envolver questões burocráticas e financeiras. Entretanto, a vida nesses países pode ser árdua. O exemplo de Zekrullah Azad fala por si só. Mas, para muitos, essa é a única solução: é a esperança de uma vida um pouco melhor, sem precisar viver às sombras de um dos regimes mais mortais do mundo. Assim, são forçadas a deixar seu país sem olhar para trás e tendo que agarrar-se na primeira e mais viável opção que lhes aparece no momento, para depois, somente, migrar para outros lugares do mundo. Como o Brasil.
Por que o Brasil?
Dois anos após tomar a decisão de sair de Cabul – a capital afegã que testemunhou a ascensão do Talibã após a retirada das forças norte-americanas -, Zekrullah Azad estava vivendo na Turquia com um propósito: obter o visto humanitário brasileiro. Quando perguntei, já pressupondo a resposta, por que havia escolhido o Brasil, ele respondeu sem hesitar:
“Por causa do visto humanitário especial para afegãos. Somente o Brasil concedeu esse visto. Eu me candidatei para o visto e, quando consegui, vim para cá. E eu sou sortudo.”
Em 8 de setembro de 2021, com o mundo todo voltado para o que estava acontecendo no território afegão, o governo brasileiro lançou a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº24, que concede vistos com o propósito de acolhida humanitária a afegãos e pessoas afetadas por situações de grave e generalizada violação de direitos humanos no Afeganistão, tornando-se o pioneiro e único país a adotar tal medida. Desde então, mais de 13.133 vistos humanitários foram autorizados, com 11.094 deles já emitidos – entre eles, o de Azad.
Entretanto, o Brasil, referência mundial em refúgio, com quase 600.000 pessoas deslocadas à força vivendo em seu território conforme dados da ACNUR, logo se deparou com uma situação delicada após a chegada desse grupo de refugiados. Sem um limite estabelecido para a quantidade de emissões desses vistos, milhares de afegãos chegaram em massa às terras brasileiras, sobrecarregando a capacidade dos abrigos disponíveis. Isso resultou na cena lamentável de centenas de afegãos acampados no Aeroporto Internacional de Guarulhos por tempo indeterminado, à espera de um abrigo.
Afegãos no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, onde esperam por dias ou
semanas por vaga em abrigos. (Crédito: Giovanna Carvalho)
Segundo a pesquisadora de Migração e Refúgio Mariana Gerbassi, o governo brasileiro não se preparou o suficiente para receber essas pessoas:
“Pensando em toda essa dinâmica, o Brasil não estava pensando nisso. Ele não estruturou um sistema para fazer com que esses refugiados de fato tivessem um acolhimento sensato.”
Mas, não foi apenas o governo brasileiro que se viu surpreendido pelo cenário. Azad compartilhou do mesmo sentimento. “Quando eu cheguei aqui, eu não sabia sobre a situação do aeroporto”, contou. O rapaz me disse que não imaginou viver aquilo e que só descobriu a realidade assim que desembarcou em Cumbica, no Terminal 3 – o qual abriga os voos internacionais -, quando uma funcionária logo o orientou a dirigir-se ao outro lado do aeroporto, onde encontraria seu improvável lar pelos próximos 20 dias: um mezanino no Check-In B do Terminal 2. Azad é apenas um entre os milhares de afegãos que chegaram ao Brasil e foram pegos de surpresa pelo cenário.
Com a situação sem previsão de ser estabilizada, o governo teve de tomar uma decisão. A medida encontrada foi uma atualização à normativa anterior, pouco mais de dois anos depois, em 26 de setembro de 2023. A motivação, declarada por eles, deve-se ao fato de que o Brasil está se tornando cada vez mais um destino para afegãos que tentam migrar para os Estados Unidos através de rotas clandestinas e extremamente perigosas. Isso, somado à cena absurda observada em Guarulhos.
Assim, desde outubro passado, os vistos só são concedidos se houver comprovação de disponibilidade de vagas em abrigos para recebê-los – que passaram a ser estabelecidas por meio de parcerias entre organizações da sociedade civil e o Estado. Mas, a pesquisadora não acredita que essa medida irá caminhar para frente. “Nunca houve um edital para definir quais são os abrigos que irão participar, nunca mais teve uma atualização. Tipo nada. Engavetaram. Em Brasília, não se fala sobre isso”, exclamou.
Confira as principais mudanças entre as portarias:
Processo de Solicitação
Emissão dos vistos
Condições de Concessão
Prazo de Validade
O silêncio do governo brasileiro perante a situação de milhares de afegãos no país é o bastante para Mariana interpretar que o Brasil não irá mais conceder visto humanitário para aqueles que estão fugindo do regime fundamentalista do Talibã. “Eu acho que não estão emitindo mais vistos, e nem que irão emitir mais. Acredito que saturou demais o governo, que não existe mais vontade política de receber afegãos no Brasil”, observou a pesquisadora.
A estratégia parece ter sido cortar minuciosamente a emissão de vistos para controlar a situação dentro do país. Aqueles que desejam solicitar o visto humanitário brasileiro após a nova portaria enfrentam um momento de incerteza. No entanto, para quem fez a solicitação antes da data de publicação, até outubro de 2023, ainda há a chance de entrar no Brasil – muitos, que possuem o visto autorizado, ainda não chegaram por diversos motivos: estão juntando dinheiro, aguardando uma entrevista com a embaixada ou esperando um familiar ou amigo para embarcar juntos.
Sobre o monitoramento desse fluxo migratório, Mariana defendeu que é fundamental estabelecer um protocolo para melhor organizar a situação, pois a sua falta levanta questões sobre responsabilidades entre embaixadas e a Polícia Federal. Além disso, a pesquisadora enfatizou a importância de realizar triagens rigorosas durante as entrevistas para concessão do visto humanitário brasileiro – o que parece não acontecer. Confira na íntegra o que diz a pesquisadora sobre o processo de triagem:
A complexidade do processo enfrentado pelos afegãos que buscam refúgio no Brasil é evidenciada pelos diversos desafios enfrentados ao longo dos mais de dois anos desde a retomada do Talibã ao poder no Afeganistão. À medida que seguem rumo ao Brasil, novos obstáculos surgem nessa jornada, mas também trazem consigo um sentimento de esperança por uma vida melhor.
Rumo a Guarulhos
Os afegãos que chegam diariamente ao Aeroporto Internacional de Guarulhos ainda se deparam com o mesmo cenário lamentável que persiste desde 2021. Há quase dois anos e meio, este terminal aéreo na região metropolitana de São Paulo se tornou o lar de centenas de afegãos. Você já conhece os desafios da primeira etapa desta jornada. Agora, vamos explorar o que os aguarda no Terminal 2 de Cumbica: