Quem anda pelos saguões do maior e mais movimentado aeroporto da América Latina, Guarulhos, não imagina o que se passa em um de seus mezaninos localizado no Check-In B do Terminal 2. Subindo as escadas rolantes de frente ao restaurante Cortés Asador, dou de cara com um Rei do Mate, rede de casas de chá brasileira, que fica à frente e testemunha o drama humano que fez moradia ao lado do Posto de Atendimento ao Migrante. A cena em questão é difícil de ignorar: uma multidão de homens, mulheres e crianças vindos do Afeganistão, após os acontecimentos de 15 de agosto de 2021, cercados por barracas e cobertores pelo chão. A visão chama a atenção de qualquer um que esteja passando pelos arredores do mezanino. 

É possível perceber a interrogação no rosto das pessoas que circulam por ali. Todos ficam olhando, na esperança de captar algum indício do que está acontecendo. Muitos nem imaginam que a paisagem nada agradável dos refugiados afegãos persiste por mais de dois anos. Essas pessoas deixaram seu país em busca de segurança rumo às terras brasileiras, fugindo do regime talibã. No entanto, ao chegarem, depararam-se com a falta de uma política pública ideal para recebê-los, sendo forçadas a aguardar por dias no aeroporto em busca de abrigo. 

O espaço escondido em meio aos 14 km² de área do GRU Airport abriga uma série de comodidades, incluindo uma enorme máquina de pegar brinquedos de pelúcia, quatro cadeiras de massagem automáticas, mais de dez caixas eletrônicos do Banco do Brasil e uma extensa janela que proporciona vista para o pátio de aeronaves ao fundo. O local, porém, foi transformado há 28 meses em algo que se assemelha a um campo de refugiados, com dezenas de migrantes afegãos que enfrentam diariamente a difícil tarefa de se adaptar à rotina do aeroporto, enquanto carregam consigo a incerteza sobre o amanhã.

Os moradores do Terminal 2

O Afeganistão é caracterizado pela vasta diversidade étnica que compõe seus 41 milhões de habitantes. No Brasil – e no aeroporto de Guarulhos -, a grande maioria dos afegãos que chegam pertencem ao grupo étnico hazara. Representando 10% da população afegã, os hazaras formam a maior parte da minoria xiita do país e têm suas raízes na Ásia Central, evidenciando características físicas asiáticas. Eles, no entanto, são frequentemente marginalizados pelos extremistas sunitas , principalmente da etnia pashtun, que corresponde a 40% da população e inclui os talibãs, que atualmente lideram o país. Com o retorno do Talibã ao poder, os hazaras foram alvo de perseguição em seu próprio país, vendo-se forçados a buscar refúgio em outras partes do mundo.

No aeroporto, basta um minuto de observação para distinguir entre aqueles que estão apenas de passagem e os que ali habitam. É possível notar, nos arredores do mezanino e até mesmo pelos demais espaços do terminal, homens com traços asiáticos andando de um lado para o outro – quase que sempre com um celular na mão; uma quantidade considerável de mulheres usando o hijab – chamado de purdah no Afeganistão, que significa “cobertura” e pode ser identificado como um véu islâmico; e crianças brincando e conversando para cima e para baixo sem preocupações no local. 

A atmosfera do mezanino sugere que o que se vê é algo inesperado, e que aqueles que vivem nos arredores não estão ali por um curto período de tempo. Além disso, essas pessoas não estão apenas se adaptando a uma vida no aeroporto, mas também a um novo país, com cultura e costumes completamente distintos. Foi em meio a este contexto que conheci aqueles que abriram meus olhos para a realidade do aeroporto: Hadi, Azad, Aalim e Mohammed – nessa ordem. Todos compartilhando o mesmo sonho de reconstruir suas vidas e encontrar liberdade, marcando o início de uma jornada árdua de recomeço no Brasil. Conheça os moradores do Terminal 2:

HADI NOORI

Afável e comunicativo, Hadi foi o primeiro afegão que conheci no aeroporto. O rapaz de 32 anos chegou sozinho às terras brasileiras no dia 9 de novembro de 2023 e ficou no aeroporto por 16 dias. Formado em Administração com especialização em Relações Internacionais, trabalhou para o último governo no Ministério de Refugiados e Repatriação até a chegada do Talibã. Após o retorno do grupo armado, precisou viver no anonimato escondido em áreas rurais do país até conseguir o visto para o Paquistão, onde ficou por dois anos e onde sua família está. Ele, que demonstrou ser muito inteligente e experiente, revelou-me que seu sonho era ser governador da província em que morava. Em um papo sobre o Brasil, ele me contou que adora futebol e afirmou, confiante, que Ronaldo Fenômeno é o melhor jogador de todos os tempos.

ZEKRULLAH AZAD

O afegão de 28 anos não é personagem novo nessa história. Como vimos anteriormente, Azad saiu do Afeganistão um dia antes do Talibã assumir o poder e passou pelo Irã e a Turquia antes de chegar ao Brasil em 20 de dezembro de 2023. No aeroporto, permaneceu por mais de 20 dias. A aparência séria de Azad pode enganar à primeira vista, mas, ao conversar com ele, revela ter uma personalidade bastante amigável. Ex-funcionário do departamento de Economia do Ministério dos Negócios Estrangeiros, veio ao país tropical acompanhado de seu irmão, que trabalhava no Ministério da Educação. Ele brincou que sua família é formada por educadores e disse que cada um está em uma parte do mundo atualmente, mas seus pais permanecem no Afeganistão. Sua salvação é o celular: graças ao aparelho, pode falar todos os dias com eles e agradece a tecnologia por isso.

AALIM FARHANG

O irmão do meio de cinco irmãos e duas irmãs, Aalim veio para o Brasil com o propósito de trazer sua família, que está no Afeganistão, para o território brasileiro. O gentil jovem de 33 anos não veio desacompanhado. Chegou em Cumbica no dia 2 de fevereiro de 2024 com Mohammed Reza, colega que não via desde a formatura do ensino médio – que fizeram juntos – e se encontram 15 anos depois na embaixada do Brasil no Irã. Foi neste país que Aalim ficou por 6 meses antes de decolar rumo às terras tupiniquins. O rapaz formado em Administração nasceu na cidade histórica Ghazni, no Afeganistão, e trabalhou como tradutor e intérprete para os políticos do último governo que eram contra o Talibã. Brincalhão e adorador do futebol, disse-me que seu time preferido é o espanhol Real Madrid, de Vinicius Jr.

MOHAMMED REZA

Apesar de sua timidez inicial e de poucas palavras, Mohammed mostrou-se extremamente simpático e risonho. De todos os afegãos que pude conversar, ele e Aalim – colega que veio junto no mesmo voo para o Brasil – foram os que ficaram por mais tempo no mezanino do Terminal 2: 32 dias. Diferente de Aalim, o rapaz de 33 anos ficou durante um ano no Irã. No Afeganistão, trabalhava em uma ONG. Nascido na província de Dykondi, formou-se em engenharia elétrica, porém, sua paixão pela economia falou mais alto e iniciou uma segunda graduação no curso. Entretanto, com a volta do Talibã, precisou deixar o país enquanto estava no quinto semestre da faculdade. O propósito de Mohammed, que almeja ser um homem de negócios um dia, é trazer a sua família que está no país afegão ao Brasil. Com a fluidez do papo, descobri que o jovem costumava praticar e ser um ótimo lutador de karatê.

A chegada ao mezanino

Quando um refugiado afegão desembarca em solo brasileiro – após um longo voo, geralmente vindo de algum país do Oriente Médio – a primeira instrução dos funcionários do aeroporto é que procure auxílio no Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM), localizado no mezanino do Check-In B, no Terminal 2 de Guarulhos. E assim o fazem. Partem do Terminal 3 – onde a maioria dos voos internacionais chega – em uma longa caminhada até o Terminal 2, guiado pelas placas dispostas pelo aeroporto e seguindo as orientações recebidas. 

Ao chegar no mezanino, ao lado do Posto, o cenário é composto por várias barracas de camping coloridas feitas por diversos materiais como nylon, poliéster e lona; além de cobertores térmicos e colchonetes de monte espalhados pelo chão, servindo de acomodação para famílias e solteiros afegãos. Nos corredores, não faltam tênis, chinelos e sandálias distribuídos pelo piso, assim como embalagens de alimentos e bebidas e cabos carregadores dispersos pelas tomadas do andar. A fim de proporcionar um mínimo de privacidade, lençóis são pendurados tal qual uma parede para dividir os espaços. Completando o cenário, malas de viagem de diversos tamanhos permanecem encostadas pelos cantos, guardando os poucos pertences que os refugiados trouxeram consigo.

Para aqueles que acabaram de chegar, este ambiente abriga dezenas de pessoas vivendo a mesma situação que eles próprios enfrentarão dali em diante. Afegãos que, assim como eles, desembarcaram no aeroporto de Cumbica com a expectativa de passar apenas algumas horas no local, mas acabam ficando por dias ou até semanas. Quando perguntei aos quatro afegãos com quem conversei se tinham conhecimento da situação no aeroporto antes de chegarem, todos deram a mesma resposta: não. “Eu não esperava essa situação”, disse Hadi. Já Aalim complementou afirmando que não receberam muitas informações quando chegaram no país: “Nós sabíamos que havia algumas pessoas vivendo assim, mas não imaginávamos que a situação era desse jeito”, revelou o rapaz.

Os números por trás do cenário

Após o choque inicial, os recém-chegados dirigem-se imediatamente ao Posto de Atendimento ao Migrante, um ponto de referência onde são realizados os registros desses refugiados e onde devem receber suporte. Mohammed explicou o procedimento inicial:Quando uma nova pessoa chega, eles perguntam o nome dele ou dela e registram no computador e tiram uma foto do passaporte”. Com o primeiro passo concluído, o cadastro no sistema da prefeitura está feito e resta aguardar por uma vaga em um abrigo.

O PAAHM atendeu 6.213 pessoas desde janeiro de 2022 até janeiro de 2024, conforme indicado pelo último relatório divulgado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Com 845 grupos familiares, neste período foram encaminhadas para abrigos 3.323 pessoas, enquanto 1.360 deslocaram-se sozinhas. 

Entretanto, embora sejam considerados como referência pela GRU Airport, concessionária do aeródromo, e pelas autoridades da prefeitura de Guarulhos e do governo federal para auxiliar na chegada dos afegãos ao Brasil pelo aeroporto de Cumbica, o PAAHM – ponte entre a situação no aeroporto e a Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social de Guarulhos – parece ter dificuldades para fornecer todos os recursos adequados para suprir as necessidades básicas dos refugiados durante sua estadia no local – assim como as demais autoridades como o próprio governo federal e a prefeitura da cidade.

É importante destacar que esses afegãos chegaram ao Brasil com o visto humanitário especial concedido pelo governo brasileiro, assinado pelos Ministérios de Relações Exteriores e da Justiça e Segurança Pública, em setembro de 2021, menos de um mês após a retomada do Talibã ao poder. Com a liberação do visto, em janeiro de 2022, veio a garantia de que receberiam acolhimento, bem como acesso aos direitos fundamentais, como saúde, alimentação, moradia e liberdade – uma promessa que não se concretizou para muitos afegãos que desembarcaram em território brasileiro. 

Isso porque, no início do primeiro ano das chegadas, em 2022, o fluxo era mais lento e o suporte fornecido pelo governo brasileiro e por organizações de apoio era eficaz. Porém, a situação agravou-se a partir de agosto do mesmo ano, com um aumento significativo na chegada dessa população, o que sobrecarregou os abrigos disponíveis. Enquanto os refugiados que chegaram a São Paulo antes da metade do ano conseguiram encontrar moradias dignas, os demais ficaram desalojados e sem previsão de assistência – a partir de então, poucos foram os momentos de trégua no aeroporto. 

Desde o prelúdio da chegada dos refugiados afegãos ao Brasil, surgiram organizações não governamentais (ONGs) formadas pela sociedade civil com o objetivo de prestar auxílio à situação. Algumas já existentes, como a organização humanitária da Igreja Católica Cáritas Brasileira, e outras que nasceram em resposta à situação, como o Coletivo Frente Afegã, fundado em 2022, e a Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (ARRO), fundada em 2023, ambas com o propósito específico de auxiliar os refugiados do Afeganistão desamparados. Com o agravamento da situação no aeroporto, a atuação dessas organizações deixou de ser apenas um apoio ao governo e tornou-se crucial para a sobrevivência e integração desses afegãos no Brasil, além de ser fundamental para o monitoramento da situação enfrentada por eles.

Hoje, uma das pessoas à frente da gestão da situação dos afegãos no país é Ana Paula Oliveira, vice-presidente da ARRO. Ela descreveu o fluxo de chegadas de migrantes afegãos no aeroporto como imprevisível: “A situação é complicada, nunca sabemos quantas pessoas irão chegar no dia”. Desde agosto de 2022, quando os abrigos alcançaram sua capacidade máxima pela primeira vez, resultando em cenas do aeroporto abarrotado de afegãos aguardando por vagas em alojamentos, o panorama tem sido extremamente variável.

Os próprios moradores do mezanino são os que mais sentem e percebem a imprevisibilidade das chegadas e partidas. Todos compartilham da mesma sensação, independentemente do período em que estiveram no aeroporto. Para Azad, que chegou ao local em dezembro passado e permaneceu até janeiro, não há um número fixo de chegadas por dia:  “Muda muito. Quando eu cheguei aqui, em 20 de dezembro, havia somente cinco famílias e dez solteiros mais ou menos. Agora, tem mais de 100 pessoas no total”. Aalim compartilha da mesma percepção: “Às vezes aumenta e às vezes diminui, porque eles transferem algumas pessoas para os abrigos”, explicou. Mohammed, que ficou no aeroporto durante todo o mês de fevereiro junto com Aalim, relatou que, nesse período, o número de chegadas superou o de partidas: “A cada semana, cerca de três pessoas saem, e todo dia chega alguém”.

No entanto, o cenário atual vem apresentando grandes melhorias, trazendo uma notícia muito aguardada por todos: em 30 de março de 2024, todos os afegãos que estavam alojados no Aeroporto Internacional de São Paulo foram realocados para abrigos, zerando o número de refugiados no local.

O mês de março vinha apresentando médias diárias menores nos últimos tempos. A ARRO, em sua conta oficial no Instagram, divulga diariamente a quantidade de refugiados afegãos abrigados no aeroporto. De acordo com as publicações, para se ter uma noção, o primeiro dia do mês registrou a presença de 82 afegãos no local; no décimo dia, esse número reduziu para 55 pessoas; e no dia 18, havia um total de 30 refugiados afegãos alojados no aeroporto. Doze dias depois, o número atingiu zero pela primeira vez em muito tempo. 

Ao longo de março, a presença de afegãos no aeroporto diminuiu progressivamente, como evidenciado 
pelas ilustrações, até atingir zero. (Crédito: Reprodução/ Instagram @arro_br.af)

A notícia é motivo de comemoração. Afinal, o mezanino do Terminal 2 de Guarulhos já foi o refúgio simultâneo de quase 300 refugiados afegãos. Hoje, porém, o mesmo ambiente já não é o lar temporário de mais ninguém. Entretanto, devemos levar em consideração o dinamismo do local e reconhecer a dificuldade de prever quando a situação poderá se estabilizar ou não no aeroporto. A pesquisadora de Migração e Refúgio Mariana Gerbassi, que é co-fundadora da ARRO e voluntária no Coletivo Frente Afegã, fez um panorama da última vez em que o número de refugiados foi completamente eliminado no local: “Dezembro de 2022 foi a época que a gente esvaziou o aeroporto. Conseguimos com que todos fossem acolhidos e o aeroporto ficou uma semana zerado completamente. Mas, logo depois, chegaram mais alguns [afegãos], mas foram acolhidos rapidamente. Depois, em fevereiro de 2022, lotou novamente. Começou com 30, 40, 60, até chegar a 160”, descreveu. 

De acordo com Ana Paula Oliveira, ainda há mais afegãos a caminho. “Os vistos já emitidos são 11 mil no total e faltam cerca de 5 mil para chegar”, revelou. Isso se deve ao fato de que, até outubro de 2023, foram autorizados 13.133 vistos humanitários, quando o governo brasileiro publicou uma atualização da portaria de 2021, interrompendo a emissão de vistos desde então. Dos vistos concedidos, 11.094 foram efetivamente emitidos, embora nem todos os portadores de visto tenham conseguido chegar ao Brasil até o momento, devido a várias circunstâncias. A coordenadora da ARRO explicou: “O visto foi suspenso por seis meses, mas ainda há afegãos para chegar. Tem gente que pede ajuda pois não tem dinheiro para vir, aí eles recorrem à mobilização de vaquinhas”.

Mesmo enfrentando dias e até semanas de espera nos corredores de um aeroporto, enquanto se adaptam a uma nova vida em um espaço público, os afegãos expressam profunda gratidão pela oportunidade de recomeçar no Brasil. Hadi, aliviado por conseguir chegar ao país, expressa sua gratidão:

“Eu, como refugiado, como alguém que está buscando proteção, aprecio muito o governo brasileiro por oferecer essa oportunidade aos afegãos. Isso é extraordinário para o mundo, para essa situação”.

A gratidão desses refugiados só reforça a resiliência que demonstraram ao longo dessa trajetória. Mesmo após os inúmeros desafios enfrentados para chegar ao Brasil, quando finalmente aqui chegam, deparam-se com a situação em Guarulhos. Local este que, segundo Aalim, são tratados bem, ao contrário de outros países pelos quais passaram. “Estamos felizes de estar aqui e poder viver aqui”, afirma o rapaz. Mas, isso não significa que o local não traz consigo desafios – muito pelo contrário.

Os desafios de viver no aeroporto

É difícil compreender o que significa verdadeiramente viver em um aeroporto. Imagine-se em um lugar onde tomar banho todos os dias é um luxo inalcançável, onde o sono é interrompido pela luz constante e onde nunca se sabe ao certo o horário da próxima refeição. Agora, adicione isso ao fato de não entender a língua local nem estar familiarizado com a cultura. Parece extremamente desafiador, não é mesmo? No entanto, é exatamente isso que muitos afegãos têm enfrentado no maior aeroporto do Brasil.

São muitas as dificuldades encontradas no dia a dia dos refugiados afegãos que habitam o mezanino do Terminal 2. Entre eles, há gestantes, recém-nascidos, pessoas com deficiência, idosos debilitados e várias crianças. Não há uma única pessoa que se sinta confortável em viver em um espaço público tão desprovido de privacidade. Enquanto isso, eles têm passado semanas em barracas improvisadas enquanto aguardam por um abrigo, enfrentando condições terríveis. 

Para complicar ainda mais, os esforços das autoridades envolvidas diretamente com a situação – Posto de Atenção aos Migrantes, GRU Airport, prefeitura de Guarulhos e governo federal – têm sido insuficientes. Como resultado, os afegãos têm contado principalmente com o apoio de ONGs e doações, as quais assumiram o papel que deveria ser desempenhado pelos órgãos governamentais. Voluntários como Ana Paula Oliveira e Mariana Gerbassi têm sido verdadeiros defensores desses refugiados. Sem a ajuda deles, muitos estariam desamparados.

Quando tive a oportunidade de conhecer Aalim, ele nem hesitou e logo me convidou para conhecer todos os cantos do mezanino onde estava alojado. Para além da área principal, havia um vasto corredor ocupado por barracas. Esse “tour” – como ele mesmo denominou – me permitiu dimensionar ainda mais a realidade em que vivem. Veja de perto como é a vida no aeroporto:


A situação no mezanino segue, praticamente, com os mesmos desafios que surgiram há dois anos com a chegada dos afegãos ao Brasil. No entanto, a maioria das pessoas nem sequer sabem que essa situação persiste. “As pessoas acham que já está tudo resolvido. Agora, tem outras coisas acontecendo: ucranianos, palestinos, vietnamitas. Mas, não. Não foi resolvido”, destacou Ana Paula Oliveira. A realidade é que ainda existem obstáculos específicos que os afegãos que residem temporariamente no aeroporto precisam enfrentar. Afinal, este local não foi projetado para ser um lar. “Na verdade, não é uma casa. É um lugar para esperar voo. Nós somos missionários aqui”, descreveu Hadi, aos risos. Portanto, é inevitável a presença de impasses nesse ambiente.
Confira os principais desafios enfrentados pelos afegãos no aeroporto: 

1. Banho

A falta de um local para tomar banho é a principal preocupação enfrentada pelos afegãos alojados no aeroporto desde o início. Tomar banho diariamente virou luxo. O espaço, que agora serve como moradia temporária para muitos dos refugiados, carece de estrutura básica para suprir a necessidade humana fundamental de higiene. Eles, no entanto, não podem ficar dias sem tomar banho, especialmente, por razões de saúde e bem-estar. Assim, encontram-se diante de uma encruzilhada, buscando maneiras de atender a essa urgência.

As opções são limitadas: eles podem optar por pagar até R$70 por um banho nas instalações do aeroporto de Guarulhos ou percorrer um trajeto de uma hora e meia, utilizando ônibus e trem, até o centro da cidade, no Brás, onde podem banhar-se por R$15 em um hotel. Azad, que conheci em janeiro deste ano, compartilhou sua experiência, optando pela segunda opção: “Em 15 dias aqui, meu maior desafio tem sido tomar banho. Um dia, fui até o Brás e tomei banho lá. Aqui é muito caro, custa 63 reais. O aeroporto não facilita para que possamos tomar banho. Desde que cheguei, consegui tomar banho apenas duas vezes”, relatou o rapaz.

A situação, na teoria, já era para ter melhorado. Em dezembro de 2023, o Ministério Público Federal solicitou que a concessionária do Aeroporto de Guarulhos, GRU Airport, providenciasse banho aos afegãos a cada dois dias. Mas, segundo a vice-presidente da Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (ARRO), Ana Paula Oliveira, a concessionária não vem cumprindo essa decisão. Enquanto isso, os afegãos enfrentam uma verdadeira odisséia em busca do mínimo de condições higiênicas possíveis, exercitando a resiliência que reside dentro de cada um deles, como descreve Azad:

“Isso é temporário. Temos que ter isso em mente, senão ficamos deprimidos. Porque, bom, as pessoas costumam tomar banho todos os dias.”

Para amenizar a situação dessas pessoas desamparadas, diversas ONGs se unem e promovem oportunidades para que eles possam tomar banho gratuitamente. No entanto, nem sempre é fácil, pois existe uma dificuldade em transportá-los para esses locais. Uma dessas iniciativas ocorreu em fevereiro, na sede do retiro Jovens da Verdade, em colaboração entre as organizações Bem da Madrugada Guarulhos, ARRO, Acolhendo Sorrisos, Além do Bem, Pequeno Teto e Médicos nas Ruas, juntamente com a Prefeitura de Guarulhos, que contribuiu com toalhas e sabonetes. Nessa ação, mais de 46 refugiados puderam tomar banho, recuperando em parte a dignidade que lhes foi prometida.

O transporte dos refugiados afegãos do aeroporto até a ação de saúde foi viabilizado graças ao apoio financeiro de doadores.
(Crédito: Reprodução/Instagram @coletivofrenteafega)

Essas ações não são consistentes devido à necessidade de mobilização de muitas pessoas e doações. Assim, muitos acabam passando vários dias sem tomar banho. Hadi, nos primeiros quatro dias em que ficou no aeroporto, tomou banho apenas uma vez. Ele observou que a situação é difícil para todos, mas ainda mais para as famílias com crianças:  “É muito difícil para as famílias. Elas têm filhos e precisam, por exemplo, lavar suas roupas todos os dias. Se pudessem lhes fornecer, por exemplo, abrigo mais cedo, seria melhor. Para homens como eu, que estamos sozinhos, está tudo bem. Podemos lidar com a situação de alguma forma”, disse o afegão. 

A realidade é que nenhum órgão assume a responsabilidade pela situação. Em dezembro, mesmo com a determinação sobre o banho dos refugiados pelo MPF à GRU Airport, que também pediu o repasse de R$10 milhões da União à prefeitura de Guarulhos no mesmo período, a situação não avançou o esperado diante da crise humanitária no local, destacando a ausência de um acolhimento digno para os afegãos que chegam ao país.

2. Saúde

O acesso à saúde também é um ponto sensível na realidade enfrentada pelos afegãos no aeroporto. Hadi compartilhou comigo sua experiência, revelando que o longo voo até o Brasil, somada às 15 horas de duração, resultou em uma gripe – algo incomum para ele, que raramente adoece. Ele observou que muitos outros também foram afetados pela mesma condição ao chegarem e que não possuem um bom suporte médico. “Não há tratamento médico ou algo do gênero aqui que possa nos fornecer um remédio simples. Seria bom se houvesse uma equipe médica que viesse, por exemplo, dois ou três dias por semana”, expressou.

Segundo Mohammed, os voluntários desempenham um papel significativo nesse aspecto: “Alguns deles nos ajudam com remédios”, disse. Além disso, em fevereiro deste ano, o rapaz me contou que um médico da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) passou a visitar regularmente os afegãos para consultas, aos sábados. Contudo, ele ressaltou que tais esforços, embora louváveis, não são suficientes. A falta de especialistas e cuidados específicos é sentida, especialmente considerando a diversidade de problemas de saúde enfrentados pelos afegãos.

Um exemplo da negligência em saúde é o surto de escabiose, conhecida como sarna, entre os refugiados alojados no aeroporto em junho do ano passado, e outro em janeiro deste ano, quando a Prefeitura de Guarulhos enviou a Secretaria da Saúde para diagnosticar e tratar os pacientes afetados. Ademais, o Coletivo Frente Afegã, para o portal G1, relatou que pessoas com coceira, sintoma comum da doença, estavam sendo atendidas em um hospital da região do aeroporto. O surto pode ser relacionado diretamente à limitada quantidade de banhos disponíveis para os afegãos e às condições de higiene do local.

Mariana Gerbassi, co-fundadora da Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (ARRO), descreveu outras situações alarmantes relacionadas à saúde dos migrantes. Ela compartilhou a angústia de testemunhar mulheres grávidas, algumas no nono mês de gestação, no mezanino, buscando cuidados médicos.

Enquanto os voluntários se empenham em prestar assistência, Mariana ressalta a necessidade de uma abordagem mais abrangente e sistemática. Os relatórios divulgados pela ACNUR sobre a situação dos afegãos no Brasil incluem uma seção dedicada ao Posto de Atendimento ao Migrante, onde é mencionado que “as equipes do posto avançado estão disponíveis para atender às necessidades emergenciais dos afegãos, inclusive acionando equipes de saúde do município”.

A integração dessas pessoas no sistema de saúde é fundamental. Por esse motivo, a ARRO, juntamente com as organizações Abarcar e Além da Fronteira, prepararam uma ação de saúde direcionada aos afegãos temporariamente abrigados no aeroporto de Cumbica, em 25 de fevereiro. Na iniciativa, estudantes de medicina que formam o projeto Abarcar ofereceram cuidados médicos aos refugiados. Confira:

3. Alimentação

Os afegãos recebem café da manhã, almoço e jantar diariamente no mezanino onde estão localizados. Cada refeição é concedida por uma entidade diferente, assim como disse Aalim. Ele contou que o café da manhã é distribuído pela prefeitura de Guarulhos e é entregue logo cedo, por volta das 7 às 9 horas da manhã. O almoço e o jantar são distribuídos pelos voluntários das ONGs e feitos pelo Bom Prato . Quanto aos horários de entrega das marmitas, levei um susto. Conheci  Aalim e Mohammed numa manhã no aeroporto e, exatamente às 10h43, enquanto conversávamos, fomos distraídos pela chegada das marmitas ao mezanino. Logo perguntei a eles o que estavam oferecendo de café da manhã naquele dia, mas a resposta de Mohammed me pegou de surpresa: era o almoço. 

Eles riram da situação e concordaram com o meu espanto. Realmente é cedo para um almoço. Ainda disseram mais: o jantar é servido por volta das 16 horas da tarde, sendo a última refeição do dia. Eles me revelaram que mesmo sem fome algumas vezes, precisam comer, pois a comida esfria rápido e eles não conhecem nenhum lugar no local em que possam esquentar a marmita para depois. 

Aalim e Mohammed experimentaram o pão de queijo, uma iguaria típica brasileira, pela primeira vez. (Crédito: Giovanna Carvalho)


Normalmente, o café da manhã é composto por biscoitos e sucos, como me disse Azad; ainda segundo ele, o almoço e o jantar, geralmente, são iguais. Voltando ao dia em que eu estava junto à companhia de Aalim e Mohammed, eu mesma pude ver qual era o prato do dia: arroz, feijão, carne e chuchu, acompanhado por uma banana. Quanto ao sabor da comida, Aalim disse que é bom, mas sem tempero. “A comida que estamos acostumados possui bastante tempero, é mais apimentada”, ele complementou. Mohammed terminou a fala do amigo brincando: “Mas não como na Índia”.

A marmita geralmente inclui arroz e feijão, acompanhados por uma mistura como carne ou legumes, além de uma
 banana ou laranja como sobremesa. (Crédito: Giovanna Carvalho)

Apesar de receberem as três principais alimentações diariamente no mezanino, alguns afegãos podem ficar de fora sem marmita. Isso porque, o Posto de Atendimento ao Migrante (PAAHM) – os responsáveis por contabilizar diariamente a quantidade de afegãos alojados no aeroporto – não o fazem. São eles que enviam os dados para a prefeitura da cidade para que possam separar a quantidade de marmitas para o dia.  “O posto está do lado e não contam. Só contam quem passou por lá. Então, o afegão que não se apresenta no posto por algum motivo, não é contabilizado e falta marmita”, revelou Ana Paula Oliveira, vice-presidente da Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (ARRO). 

A representante da ARRO disse que essa situação só reforça a necessidade de voluntários no aeroporto, pois são eles que acabam passando as informações corretas. Porém, a responsabilidade não é deles: “Não é obrigação da sociedade civil fazer isso”, afirmou. Mas, infelizmente, quando não estão presentes, podem chegar de 20 a 30 marmitas a menos, nessa proporção. A indignação de Ana Paula é de extrema pertinência, pois o PAAHM, por não cumprir com o que lhes foi atribuído, consequentemente tiram o direito das pessoas de se alimentar, por descaso deles. O posto não respondeu às tentativas de contato para esta reportagem para falar sobre o assunto. 

Uma questão que envolve diretamente a alimentação é o Ramadã. O período em que os mulçumanos jejuam entre o nascer e o pôr-do-sol teve início neste ano no dia 10 de março, com fim em 9 de abril. Durante este intervalo, a prefeitura de Guarulhos informou à Agência Brasil que organizou um plano específico para garantir a distribuição de alimentos aos afegãos no aeroporto. De acordo com eles, apenas crianças, idosos, gestantes e pessoas com algum tipo de comorbidade estão recebendo almoço; e no jantar, todos os refugiados recebem.

4. Barreira Linguística

O ato de se comunicar é essencial em todos os momentos da vida. Nos comunicamos a todo instante, seja por fala, escrita, gestos, expressões faciais, entre outros meios. Logo, toda interação necessita de uma forma de comunicação e, para isso, os interlocutores devem se compreender. Tarefa difícil para quem está longe de casa, em outro país, com um idioma completamente diferente do seu. Isso é o que acontece com todos os afegãos que chegam ao Brasil. Eles enfrentam uma barreira linguística muito forte no país da América do Sul. 

No Afeganistão, as línguas oficiais são o pashto e o dari, chamado também de persa afegão. Ambos os idiomas são completamente diferentes do português brasileiro que falamos por aqui. Então, os afegãos que buscam se integrar na sociedade brasileira encaram uma grande dificuldade ao aprender o novo idioma. Enquanto isso, comunicam-se com o inglês, considerado língua universal. Porém, embora a língua tenha essa classificação, não é tão simples assim. Nem os afegãos e nem os brasileiros sabem o inglês em sua maioria, são poucos os que sabem em ambas nacionalidades. 

Segundo Mariana Gerbassi, a maior parte dos afegãos não falam inglês, poucos falam fluentemente e alguns sabem o básico. Por isso, encontram muitas dificuldades em entender questões burocráticas e informações fundamentais. Ela diz que no início, o Posto de Atendimento ao Migrante (PAAHM) – que está ao lado do ambiente em que os afegãos ficam no aeroporto e são os responsáveis por informá-los – não tinham representantes que dominavam a língua inglesa, assim tinham que solicitar alguém que falasse, o que complicou a situação. 

Porém,  a partir de agosto de 2022, oito meses após a liberação da entrada dos refugiados afegãos ao Brasil, foram contratados três mediadores culturais e intérpretes de nacionalidade afegã para apoiar na recepção desses migrantes no aeroporto, auxiliando o PAAHM. A informação consta em todos os relatórios da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) sobre a situação dos afegãos no Brasil, em seção dedicada ao posto. Assim, a barreira linguística pôde ser driblada em diversos momentos, facilitando o acesso a informação a esses refugiados que chegam sabendo pouco sobre os processos do país e sua estadia no local.

Na entrada do Posto de Atendimento aos Migrantes, há panfletos em persa contendo informações sobre documentação, abrigos e respostas para dúvidas frequentes dos afegãos. (Crédito: Giovanna Carvalho)

Apesar dos mediadores, alguns funcionários do aeroporto e voluntários que falam inglês, no dia a dia é difícil encontrar pessoas que dominem o idioma. É isso que Azad percebeu: “Aqui, as pessoas não entendem inglês muito bem. Eu sempre uso o Google Tradutor para falar com as pessoas. Na verdade, você é a primeira pessoa a falar comigo em inglês. Eu agradeço muito por isso”, revelou-me o rapaz – em seguida, fico feliz por saber que pude contribuir positivamente com ele de alguma forma. O jovem afegão, que sabe falar cinco línguas, disse que nunca teve contato antes com o português e que leva tempo para aprender um novo idioma: “A verdade é que quando você se depara com uma nova língua, parece muito difícil. Mas, quando começa a aprender, fica muito mais fácil do que parecia”. Ele ainda compartilhou a sua visão sobre a língua oficial do Brasil:

“Antes de vir para cá, eu não tinha a menor noção do português. É uma língua totalmente diferente do persa. Quando eu assisto os filmes, eu vejo que o alfabeto é bem difícil.”

Assim como ele, todos os outros afegãos tiveram a mesma impressão. Alguns se dedicam realmente ao aprender o idioma. Aalim e Mohammed, amigos que vieram juntos ao país brasileiro, aproveitaram as oficinas de português oferecidas por voluntários no tempo em que estiveram no mezanino do Terminal 2. Por mensagem, após termos nos conhecido no aeroporto, Aalim me pediu indicações de séries e filmes brasileiros para auxiliá-lo em seu aprendizado. Além disso, lembro-me de Mohammed surpreendido por descobrir que no português quase “toda palavra tem um feminino e um masculino”, nas palavras dele. De toda forma, os afegãos que chegam e passam a viver no Brasil precisam enfrentar a barreira linguística que os acompanha por onde vão. Mas, com a determinação que os movem, dedicam-se a aprender o nosso português. Assim, esperamos e torcemos para que tenham a melhor experiência possível no país.

5. Estigma e Integração

Em muito a cultura brasileira se difere da cultura afegã. Portanto, o convívio e integração com essa nova realidade pode ser desafiador para muitos dos migrantes afegãos. Aalim mesmo já cita algumas delas: “O jeito que as pessoas se comportam é muito diferente do nosso país. O modo de se vestir é bem diferente também. Aqui, vocês não tem inverno com neve, lá às vezes sim. E, no Afeganistão, [o tempo] é mais seco”. A um oceano e um tanto a mais de distância, os dois países diferem em termos de costumes, tradições, normas sociais e práticas cotidianas, além das questões climáticas como mencionou o rapaz. 

As organizações, com o objetivo de unir a comunidade afegã que vem se formando no Brasil, promovem ações de disseminação da cultura, também tentando aproximar os nativos dos costumes de sua terra em solo brasileiro, para que se sintam livres de viver em um país plural. Além disso, também promovem ações de integração à cultura brasileira, mostrando aos refugiados os costumes e tradições que temos em nosso país. 

Infelizmente, os afegãos podem enfrentar discriminação ou estigma por parte de alguns setores da sociedade brasileira devido a preconceitos étnicos, religiosos ou culturais. Apesar de ser um país plural, que abrange inúmeras culturas, existe preconceito no Brasil. De acordo com a co-fundadora da Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (ARRO), Mariana Gerbassi, que pesquisa sobre estigmas e alteridades na área de migração e refúgio, o fato de serem mulçumanos é o suficiente para sofrerem preconceitos. “A gente vê muito essa questão da hospitalidade do Brasil junto com a hostilidade, de fazer piada com tudo. Como, ‘Ah, mas não joga uma bomba não’. Tem muitos relatos, não só de afegãos, mas de imigrantes do Oriente Médio que sofrem esses preconceitos. É como se o Oriente Médio fosse uma massa cinzenta, sem identidade, tudo igual, ligado ao terrorismo”, explicou a pesquisadora. 

No aeroporto, já ocorreram alguns casos de preconceito. Segundo Mariana, “Uma vez já chamaram eles de ‘Talibã’ e os afegãos ficaram revoltados. Quase saiu porradaria, e a gente super preocupado com o caos pensando que eles seriam expulsos do aeroporto”. Apesar disso, todos os afegãos que eu tive a oportunidade de conversar tiveram boas interações no Brasil e mantém uma opinião positiva sobre o país. Azad ficou encantado com o comportamento dos brasileiros:

“As pessoas aqui não se importam de onde você veio, com a sua nacionalidade. Elas te ajudam do mesmo jeito, não importa se você é afegão, húngaro ou alemão, por exemplo.”

Saindo da integração cultural para falar da integração social, os afegãos que estão alojados no Aeroporto Internacional de São Paulo não possuem muito o que fazer em sua rotina no local. Lá, interagem entre si, conversam, se entretêm com seus celulares, as crianças brincam e alguns saem do aeroporto para resolver pendências de documentação, por exemplo, como tirar o CPF.

Os refugiados afegãos mantêm contato com suas famílias por meio de seus celulares. (Crédito: Giovanna Carvalho)

Desse modo, as organizações buscam sempre que possível planejar ações para os afegãos que estão abrigados no mezanino, com o propósito de  promover o sentimento de pertencimento e lazer para essas pessoas. Afinal, todos precisam se divertir e espairecer a mente, principalmente as crianças. Pensando nisso, para estimular a integração desses afegãos, a ARRO, em parceria com as organizações Além do bem, Sou Riso, Projeto Abarcar e Identidade Humana organizaram uma ação para as crianças, em dezembro, repleta de brincadeiras, música, dança e doações de presentes. 

6. Golpes

Todos os aeroportos ao redor do mundo são ambientes propícios a uma lista extensa de perigos, especialmente relacionados a golpes. O Aeroporto Internacional de São Paulo não foge dessa realidade. Os refugiados afegãos que chegam ao local estão sujeitos a serem vítimas de golpes de todos os tipos. Mariana Gerbassi, co-fundadora da ARRO, falou sobre algumas dessas possíveis armadilhas. 

No mezanino onde guardam seus pertences e descansam, os refugiados correm o risco de cair no golpe do CPF. Quando os afegãos começaram a chegar ao Brasil, organizações como a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e a Cáritas Brasileira foram ao aeroporto para ajudá-los com a documentação, incluindo a emissão do CPF, um documento essencial emitido pela Receita Federal. Porém, durante esse período, outras pessoas se apresentavam como auxiliares, mas acabavam por obter dados sensíveis dos afegãos e cobrar por serviços que não prestavam, como a emissão do CPF. Mariana relatou que os afegãos questionavam os voluntários sobre o andamento do processo de emissão do CPF, mas eles não tinham respostas. Afinal, os afegãos tinham caído em um golpe. Diante disso, os voluntários passaram a alertar os refugiados sobre esse tipo de golpe e orientá-los sobre o processo de emissão do documento.

Além disso, no aeroporto, há diversos “ coiotes ” que tentam convencer os afegãos a embarcarem em travessias ilegais para outros países. A pesquisadora observa que era comum ver pessoas do Bangladesh e do Paquistão aliciando afegãos dentro do próprio aeroporto para realizar tais travessias. Ela diz que alguns afegãos relataram aos voluntários que esses coiotes cobravam até R$10 mil para tirá-los do Brasil. Assim, eles denunciaram a situação para as autoridades competentes, como o Ministério Público, a Polícia Federal e o Ministério da Justiça, com participação da ARRO, que foi até Brasília para tratar do assunto.

No Aeroporto de Guarulhos, são exibidos avisos alertando contra o uso de transportes para travessias ilegais.
(Crédito: Giovanna Carvalho)

Outro tipo de golpe é o contrabando de pessoas, uma preocupação séria em todos os aeroportos do mundo. Inclusive, o Posto de Atendimento ao Migrante foi criado com o intuito de conscientizar sobre o tráfico humano e prestar auxílio em casos relacionados. A co-fundadora da ARRO relata que houve várias reuniões com o Ministério da Justiça para desenvolver estratégias de comunicação contra o contrabando de pessoas e tráfico humano, especialmente considerando a alta taxa de contrabando de afegãos. Ela ressaltou a necessidade de campanhas específicas para essa categoria de migrantes, incluindo materiais informativos em diferentes idiomas. Apesar das propostas, até o momento, não houve avanço nessa iniciativa, continuando a expor os afegãos e outras pessoas ao risco de serem aliciados no aeroporto.

Políticas públicas para quem?

No meio da crise no Afeganistão, os afegãos viram no Brasil uma esperança de um futuro melhor, com promessas de paz e segurança através do visto humanitário. No entanto, ao chegarem, perceberam que muitas dessas promessas não foram cumpridas. Então, enfrentaram desafios inesperados ao se depararem com uma realidade diferente da imaginada. Mas, afinal, quem são os principais responsáveis por oferecer políticas públicas adequadas para esses afegãos?

As autoridades envolvidas desempenham papéis distintos no oferecimento de políticas públicas para essa população. Então, vamos fazer um panorama geral da situação: o Governo Federal, responsável pela concessão dos vistos humanitários, é cobrado pelo Ministério Público Federal (MPF) para garantir um acolhimento digno aos cerca de 11 mil afegãos que receberam vistos desde 2021. A prefeitura de Guarulhos, embora afirme não ser a entidade principal responsável pelo acolhimento, realiza o primeiro atendimento e o cadastro dos afegãos através do Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante, além de solicitar vagas para acolhimento junto aos governos estadual e federal. Por sua vez, o governo estadual de São Paulo investiu em recursos para a acomodação de migrantes e refugiados e mantém diálogo com o governo federal sobre políticas de acolhimento e interiorização. Enquanto isso, a GRU Airport, concessionária responsável pelo aeroporto, esclarece que o acolhimento direto é feito pelas autoridades públicas competentes, como a prefeitura de Guarulhos e o governo estadual, enquanto a empresa administra a infraestrutura aeroportuária.

Agora, vamos nos aprofundar. O MPF tem denunciado a inércia do governo federal diante da crise humanitária no local, destacando a ausência de um acolhimento digno para os cerca de 11 mil afegãos que receberam vistos desde 2021. Na mesma linha, uma ação civil pública exige que R$10 milhões sejam destinados à União para que o município de Guarulhos possa assumir a responsabilidade humanitária. Falando em verba, a secretaria estadual informou ainda que investiu, no ano passado, mais de R$6 milhões para acolher migrantes e refugiados em duas casas de passagem e oito repúblicas com capacidade para receber mais de 200 pessoas. Já a GRU Airport, concessionária que administra o aeroporto, informou à Agência Brasil que a atuação direta no acolhimento de famílias afegãs que chegam ao Brasil é realizada pela prefeitura de Guarulhos e demais autoridades públicas competentes.

Ao longo da produção desta reportagem, fiz contato com algumas das principais autoridades descritas acima, mas não tive sucesso. A prefeitura de Guarulhos respondeu, mas alegou que o secretário Fábio Cavalcanti não tinha disponibilidade para falar; após os futuros contatos, eles pararam de responder. O Posto de Atendimento Humanizado não atendeu aos e-mails e não atendeu às ligações, assim como a GRU Airport. 

Embora a situação no aeroporto tenha melhorado desde o início de 2024, houveram muitos casos de descaso com a situação. Ana Paula Oliveira, vice-presidente da ARRO, disse que “o GRU joga a responsabilidade para a prefeitura e a prefeitura para o GRU”. Assim, todos os órgãos seguem fazendo entre si.  O objetivo das autoridades é mitigar a situação, mas para isso existe um esforço e um preço. A co-fundadora da ARRO Mariana Gerbassi apontou: 

“A verdade é que os afegãos são uma pauta muito cara para o governo hoje. Tem que construir mais abrigos. Tem que ter uma tensão e vontade política muito forte, e isso demanda muito gasto.”

Desse modo, as consequências da falta de uma política pública ideal para esses refugiados vindos do Afeganistão sobram para as organizações, que possuem os voluntários: os maiores protetores dos afegãos no Brasil. Diversas ONGs cumprem um papel que não deveriam assumir. Mas, senão, quem iria fazer? 

Mariana me contou que organizações como a ARRO e o Coletivo Frente Afegã tentam atuar cada vez mais no fluxo de atendimento dos afegãos. Ela destacou que, como sociedade civil atuando no apoio aos afegãos no aeroporto, eles acabaram ganhando muita visibilidade, até serem chamados para participar da construção da política nacional migratória. “A gente realmente conseguiu ganhar visibilidade por causa do nosso trabalho porque é um trabalho muito sério”, enfatizou a pesquisadora. 

O comprometimento deles é em chamar a atenção para a fragilidade dos acolhimentos dos afegãos. Nesse sentido, querem auxiliar com o fluxo desse processo. Ela contou que já participou de reuniões com o Ministério da Justiça, a Prefeitura de Guarulhos, o Posto de Atendimento aos Migrantes, com a OAB de Guarulhos e a ACNUR, por exemplo, para tratar da situação. “A gente vê tais brechas nesse fluxo de acolhimento e estamos aqui porque queremos ajudar, não tomar o lugar deles”, ela enfatizou. Porém, o fato de serem uma mobilização da sociedade civil e “de não serem estatais ou não ter anos de CNPJ”, eles rejeitam a participação das organizações. Assim, Mariana conclui que a presença dos voluntários no aeroporto foi por persistência: “Tudo o que conseguimos foi por teimosia. E essa é a maior verdade que existe”. 

Para a evolução desse processo, Mariana disse que há muito o que melhorar. Para ela, a maior problemática da situação é a desconexão de todo o fluxo de acolhimento, desde as embaixadas até a chegada no Brasil: “A problemática está na fraqueza deste fluxo”. Quando perguntei sobre o maior desafio, ela nem hesitou: é promover um acolhimento que promova uma vida de qualidade para as famílias afegãs. Ela declarou:

“O desafio é o tempo, espaço e dinheiro para lidar com essa demanda, que é imensa e urgente. É lidar com essa grande crise”

Embora o fluxo esteja longe de se tornar perfeito, finalmente tivemos um avanço. Em abril de 2024, o aeroporto está sem afegãos pela primeira vez em pouco mais de um ano. No dia 4 do mês, uma nova esperança surgiu com a inauguração da ‘Casa do Migrante Terra Nova III‘. Este abrigo, resultado da colaboração entre os governos estadual e federal, oferece refúgio, alimentação e apoio médico aos refugiados que chegam pelo Aeroporto de Cumbica. Nele, mais de 150 pessoas poderão iniciar suas vidas no Brasil, com as condições dignas que tantos outros ao longo desses dois anos de entrada ao país mereciam. Agora, torcemos para que o vazio do mezanino do Terminal 2 seja permanente e que nunca mais ele tenha que virar abrigo de ninguém.

À espera de um recomeço

Durante este período tumultuado, milhares tiveram sua resiliência e capacidade de adaptação testadas. Mesmo passando por tudo e mais um pouco, todos os afegãos com quem conversei demonstraram uma gratidão admirável e nunca se queixaram, mesmo em meio às condições em que viviam. Um exemplo puro disso é Aalim, que mantém uma fé inabalável de que as coisas vão melhorar: “Nós temos que aproveitar cada parte de nossas vidas, até mesmo os desafios. Temos que viver cada desafio que enfrentamos”, ele disse. 

Certamente, essa profunda gratidão pelo Brasil tem suas razões. Além de verem o país como uma terra cheia de novas oportunidades, os voluntários desempenham um papel crucial nisso. Eles são os únicos que verdadeiramente os ouvem, buscando compreendê-los para oferecer a melhor assistência possível. “O que eles querem não é que você bote o nome deles em um sistema, eles querem se sentir ouvidos. Você só vai saber como acolher depois que sentar e ouvi-los”, Mariana ressaltou. 

A co-fundadora da ARRO ainda complementou: “Fazemos amizades, passamos muito tempo com eles. Eles se sentem amparados porque a gente conhece a história deles”. Assim, encontram apoio em meio ao caos do Terminal 2 de Guarulhos. “O povo brasileiro é bom, todos nos trataram muito bem. Nós estamos muito agradecidos”, disse Hadi. Apesar de todas as adversidades, todos se sentem aliviados ao chegar aqui, pois, a partir de então, enfrentarão novos desafios, mas estarão mais próximos de alcançar  seu destino final, onde quer que seja. Assim, seguem olhando para o melhor que o futuro lhes aguarda, como Azad: 

“Isso aqui é temporário, logo nós vamos para um abrigo.”

E ele está certo. Após passarem dias no aeroporto, Azad, Aalim, Hadi e Mohammed partiram para além das fronteiras de Cumbica, cada um seguindo seu próprio caminho. Conheça agora a última etapa desta trajetória que parece não ter fim.